A Ira de Deus Segundo São João Crisóstomo

Um dos primeiros escritos de São João Crisóstomo são duas cartas escritas a um amigo, Teodoro, que havia se afastado de Cristo.  Nestas cartas, São João encoraja Teodoro a voltar a Cristo e se arrepender de sua loucura pecaminosa - Teodoro tinha fugido da vida monástica para voltar à academia e a uma vida de riqueza, privilégio e, acima de tudo, fornicação.  Teodoro havia ficado cativado pela beleza de uma jovem mulher, Hermione. 

Ao instar Teodoro a arrepender-se e retornar à vida monástica, São João responde a vários argumentos prováveis que poderiam ocorrer a Teodoro para impedi-lo de se arrepender.  Um dos principais argumentos é que Deus pode não aceitar seu arrependimento.  Ou seja, Teodoro poderia pensar que por ter caído de tal altura para tal profundidade, de viver como um monge honrado e respeitado para viver em um bordel, que por causa desta grande queda Deus não aceitaria seu arrependimento.  No entanto, São João contrapõe este argumento com exemplos das grandes quedas de outros homens famosos, não sendo o menor deles o rei Davi, todos arrependidos e cujo arrependimento foi aceito por Deus.

Apenas afim de tornar o caso o mais extremo possível, para que Teodoro não pense que São João está falando daqueles que só caíram em pecados menores, São João explicita que está falando de um crente que foi bem agradável a Deus, que agora se tornou "um fornicador, adúltero, efeminado, um ladrão, um bêbado, um sodomita, um profanador e tudo mais".  Este é o tipo de queda a que São João se refere, e esta é a própria profundidade do pecado que São João está dizendo a Teodoro que é possível retornar.

Mas antes de São João ir mais longe, ele tem um pequeno excurso, uma pequena digressão, sobre a ira de Deus. E é nisto que eu gostaria de focar hoje: como São João compreendeu o papel da ira de Deus, ou punição divina, no arrependimento e o que nos revela sobre o que é e o que não é a ira de Deus.

Todas as escolhas da vida têm consequências, consequências para nós mesmos e consequências para o mundo ao nosso redor. E quando caímos nas paixões extremas dos pecados, essas consequências podem ser muito dolorosas e destrutivas, tanto para nós mesmos quanto para os outros. É em grande parte a essas consequências dolorosas que nos referimos como a ira de Deus. São João escreve:

Pois se a ira de Deus fosse uma paixão, alguém poderia muito bem desesperar por ser incapaz de apagar a chama que acendeu por tantos males; mas como a natureza divina não tem paixão, mesmo que Ele castigue, mesmo que Ele se vingue, Ele faz isso não com ira, mas com ternura, e muita bondade.... Pois... Ele não costuma visitar com castigo por causa de Si mesmo; pois nenhum mal pode atravessar essa natureza divina; mas Ele age com vistas a nossa vantagem.... E por esta razão Deus nos ameaça com castigos, e muitas vezes os inflige, não como vingança, mas como forma de nos atrair a Si mesmo.

Note que nesta passagem palavras como ira, castigo ou vingança não se referem ao estado de espírito ou sentimentos de Deus. Deus pode realmente nos infligir ira, mas essa ira não tem nada a ver com o sentimento de ira de Deus para conosco, como se Deus tivesse de alguma forma se ofendido por nossos pecados e fracassos. Deus não pode ser ofendido. Como o sol, diz São João, que não é afetado de forma alguma se ficarmos na sombra, assim Deus não se ofende por nos virarmos para a escuridão. Deus só se importa conosco e em como a escuridão vai nos destruir.

Portanto, por causa do amor de Deus por nós, Ele permite que sejamos afligidos. De fato, Ele mesmo muitas vezes nos inflige com vários sofrimentos a que nos referimos como a ira ou vingança ou castigo de Deus. E isto Ele faz para nos atrair de volta a Si mesmo e para nos poupar de continuarmos a nos ferir a nós mesmos e àqueles ao nosso redor.

Bem, você pode perguntar, como é isso? Como o sofrimento doloroso nos traz de volta a Deus? Ele nos traz a Deus, devolvendo-nos ao nosso bom senso, aos nossos sentidos. Em minha experiência, não há nada como o choque da dor e da decepção para me tirar do devaneio e da fantasia ilusória. Mesmo o frenesi de uma indulgência apaixonada pode ser abreviado por uma dor repentina e severa ou por um confronto inesperado.

São João usa o exemplo específico de um médico que trata uma pessoa louca. O médico não se ofende com o comportamento ultrajante da pessoa insana, mas aplica tratamentos e terapias à pessoa doente na esperança de trazê-la de volta à sanidade de algumas pequenas maneiras. Quando o médico começa a ver alguns pequenos progressos, então a terapia é aumentada e os tratamentos são repetidos até que a pessoa insana recupere sua sanidade. São João coloca as coisas desta maneira:

Mesmo assim, Deus, quando caímos no extremo da loucura, diz e faz tudo, não para se vingar por causa de nossas ações anteriores; mas porque Ele deseja nos libertar de nossa desordem [doença].

Mais adiante, na primeira carta, São João mostra como foi o sofrimento do filho pródigo que o trouxe a si mesmo, o trouxe a seus sentidos. Quando voltamos à razão, é quando começamos a voltar a Deus. Foi somente quando o filho pródigo perdeu tudo, estava faminto e foi humilhado (pense nisso, um menino Judeu forçado pela fome a cuidar de porcos) - foi somente então que ele voltou à razão e decidiu voltar com humildade a seu Pai.

Parte do sofrimento que experimentamos é claramente a consequência de nossos próprios pecados. Alguns sofrimentos vêm dos pecados e falhas de outros - assim como nossos pecados e falhas causam muito do sofrimento de outros. Certo sofrimento vem do simples fato de vivermos em um mundo caído, em um mundo sujeito a mudanças, muitas vezes repentinas e violentas, um mundo que se desmorona, um mundo governado por seres humanos assustados e egoístas como você e eu.  

Todo sofrimento, entretanto, independentemente de sua aparente fonte imediata, pode ser entendido como a ira de Deus. Mas nunca devemos esquecer que a chamamos de ira de Deus por causa de como nos sentimos e de como a experimentamos, não porque Deus esteja de todo zangado ou vingativo. Ao contrário, Deus permite e traz sofrimento em nossas vidas como médico que trata um paciente. Que paciente após uma grande cirurgia não experimentou a ira do fisioterapeuta? A cura do corpo é muitas vezes dolorosa. 

Semelhantemente, a cura da alma muitas vezes requer choques para as formas estabelecidas de nos vermos e às pessoas ao nosso redor. Esses choques dolorosos nos ajudam a nos libertar de nossas ilusões passionais; eles nos ajudam a voltar a nós mesmos e depois a voltar a Deus.

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